Juventude e drogas: desafio da transição
entre o segundo e terceiro milênios
O último estudo feito pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (Unodc), divulgado em setembro de 2007, indica tendência de crescimento do consumo de drogas na América do Sul e no Brasil – em nosso país, aumento de aproximadamente 10% ao ano no número de usuários. Na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA) os dados indicam, pela primeira vez em muitos anos, tendências à estabilização do consumo de drogas ilícitas, como a cocaína e o ecstasy. O relatório da ONU é considerado retrato confiável da situação mundial e serve para avaliar o funcionamento das políticas nacionais e globais de combate às drogas.
Os EUA carregam o triste título de campeão mundial de uso de drogas ilícitas entre jovens e, paradoxalmente, também o de campeões mundiais em destinação de recursos ao combate às drogas. Acreditamos que isso aconteça porque são o “templo mundial” do individualismo e da venda de “falsos valores” impostos pela sociedade neoliberal e consumista. Os trágicos acontecimentos – recentemente noticiados pela mídia – gerados pelo uso indiscriminado de armas por cidadãos americanos mostram que proibir a compra de armas e munição nos EUA contraria o princípio do liberalismo econômico lá apregoado. A economia de mercado, que ganha milhões com a venda de armas, é mais importante do que a vida humana. E essa “armadilha dos falsos valores” reflete diretamente também na juventude brasileira, sendo uma das grandes fontes do problema do uso crescente de drogas pelos nossos jovens.
Estudos recentes apontam que 3,4% dos adolescentes no Brasil são dependentes de álcool. Além do grave risco da dependência, a censura interna é derrubada quando o jovem está sob o efeito do álcool, tornando mais fácil a experimentação de outras drogas. “Adeus superego”. E o prazer gerado pela droga torna o jovem bastante vulnerável ao desejo de repetir a experiência.
Didaticamente, o consumo e a dependência de drogas depende da interação de três fatores: a pessoa, o ambiente e a droga.
As mudanças no funcionamento da família, quando os pais deixam de se fazer presentes na educação dos filhos, graças à crescente necessidade de ascensão social e do desejo consumista de sucesso, dinheiro e status, causa a completa inversão de valores de uma sociedade que qualifica os seu membros pelo que possuem e não pelo que efetivamente são. A dignidade da pessoa humana é trocada pela falsa dignidade do acúmulo de bens e capital.
Na adolescência, fase da busca da própria identidade, é fundamental que o jovem tenha sonhos de um futuro mais justo, projetos de vida, desejo de construir algo melhor do que encontrou até então. Muitas vezes essa transcendência é destruída pelos valores do prazer imediato e intenso, falta de limites e não tolerância às frustrações. Muitas vezes os pais se preocupam tanto em dar o melhor para os filhos, do ponto de vista material, que se esquecem da relevante importância de transmitir valores morais, éticos e espirituais. Esquecem-se de mostrar que o sofrimento é redentor e o amor é exigente. Deixam heranças capitais para os filhos e falham em transmitir os princípios espirituais, os valores vividos e aprimorados por várias gerações, em contraposição aos valores materiais.
O jovem tem maior possibilidade de usar drogas quando perde estabilidade do ambiente social e familiar; quando seus vínculos com os pais são frágeis; quando falta disciplina e monitoramento por parte desses; quando não possui vínculos com instituições sociais que possibilitam o desenvolvimento de seus desejos de transcendência – como igreja, grupo de jovens, etc. – e quando seus pais e amigos abusam de drogas, ainda que lícitas, como o álcool.
O principal fator de risco apontado pelos estudos é a ausência da mãe em quantidade (tempo) e a ausência do pai em qualidade. Fica a pergunta: onde está o pai? Em muitos casos falta a função paterna de imposição de regras e transmissão de valores.
A travessia do rio da adolescência era bem menos arriscada há 20 ou 30 anos. As pedras eram mais visíveis e menos escorregadias, os riachos eram menos cheios, menos violentos e, com relativa facilidade, se chegava à outra margem sem grandes quedas e lesões. A situação mudou de maneira drástica e não há pai nem mãe que não perceba isso. Nossos filhos, hoje, andam num rio mais caudalosos, com menos chances de travessia segura, porque o escorregadio terreno das drogas, da violência, do comportamento sexual de risco, da televisão permissiva e erotizada, das informações passadas de maneira imatura e indiscriminada, obriga os adolescentes e os jovens a dar saltos que antes não dávamos. Eles, hoje, sabem mais do que sabíamos sobre violência, medo, amor, sexo e depressão. E sofrem mais do que sofríamos. Se ontem precisávamos desesperadamente do abrigo de uma boa família e de pais amorosos e seguros, atualmente os jovens precisam dez vezes mais de pais que os ouçam, “percam” tempo com eles, dialoguem, discutam os problemas e lhes mostrem que a maturidade é experiência que vale a pena. A ternura e a renúncia ainda são as duas grandes virtudes que mantêm uma família unida e que asseguram aos jovens uma razão de viver.
O ambiente
Faz-se necessário diminuir a distância entre o que se fala e o que se faz. Todos sabemos que a prática de esportes é benéfica ao jovem, lhe proporciona motivação, o traz para a convivência de grupos mais saudáveis.
Os mecanismos regulatórios podem ser mais eficientes na restrição da propaganda de bebidas, no controle dos pontos de vendas com aumento da idade legal pra o consumo de álcool (e fiscalização) e na restrição do horário de funcionamento dos bares, conforme a exitosa experiência desenvolvida na cidade de Diadema (SP), que vai completar cinco anos.
As campanhas antidrogas precisam ser permanentes para tornarem-se eficazes. É preciso derrubar mitos e esclarecer à população que o consumo da maconha (por muitos considerada droga “leve”) aumenta o risco de transtornos mentis, especialmente a esquizofrenia. Pelo menos 12% dos casos de esquizofrenia na Inglaterra foram desencadeados por seu uso. Além disso, a maconha piora o desempenho na escola e diminui a motivação do jovem para fazer as coisas. Quem é usuário regular da maconha tem tendência a adiar tudo.
Pensando na necessidade de esclarecimento permanente às crianças e adolescentes, transcrevo o depoimento de Percy Patrick, que escreveu, antes de cometer suicídio, essa carta endereçada aos jovens: “Se alguém lhe oferecer algum tóxico, demonstre ser mais homem do que eu fui. Não se deixe tentar, por nenhuma razão, e saiba responder com um “não”. Talvez você encontre “amigos” que lhe ofereçam gratuitamente um pouco de droga para depois, sucessivamente, fazer você pagar por ela. No princípio o preço é reduzido, mas quando perceberem que você se tornou dependente, aumentarão os preços. Não esqueça que a mesma pessoa que lhe vendeu a maconha terá, em reserva para você, também a heroína. E tudo isso por quê? Não certamente pela sua felicidade, mas para obter dinheiro. A droga pode oferecer momentos de felicidade, mas a cada um destes momentos corresponde um século de desespero que jamais poderá ser apagado. A droga destruiu todos os meus sonhos de amor, as minhas ambições e a minha vida no seio da família.”
A droga
No mundo das drogas existe o produtor, o agente financeiro, o intermediário, o usuário. O sistema é interligado com o do crime organizado, do tráfico de armas e da prostituição. É necessário prender e punir não somente o traficante das favelas, mas também os grandes barões que moram nos condomínios de luxo e financiam o tráfico de drogas e armas. Caso contrário, assistiremos passivos e inertes ao sepultamento de nossa sociedade, a cada dia mais distantes da tão sonhada civilização da justiça e do amor.
Termino essas reflexões reproduzindo o diálogo entre pai e filho que se preparam para cruzar uma ponte pênsil. Ante o perigo da travessia, o pai adverte o filho:
- Filho, tenha cuidado e preste bastante atenção onde coloca os pés, pois é muito perigoso cruzar esta ponte.
O filho, com um olhar que refletia mais estranheza do que obediência, responde:
- Pai, me pergunto quem de nós deve ser mais cuidadoso para atravessar, já que a minha intenção é pisar exatamente no lugar que você pisar.
Publicado pelo Conselho Federal de Medicina. Autora: Sigrid Terezinha Campomizzi Calazans, pediatra, Ipatinga, MG.
entre o segundo e terceiro milênios
O último estudo feito pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (Unodc), divulgado em setembro de 2007, indica tendência de crescimento do consumo de drogas na América do Sul e no Brasil – em nosso país, aumento de aproximadamente 10% ao ano no número de usuários. Na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA) os dados indicam, pela primeira vez em muitos anos, tendências à estabilização do consumo de drogas ilícitas, como a cocaína e o ecstasy. O relatório da ONU é considerado retrato confiável da situação mundial e serve para avaliar o funcionamento das políticas nacionais e globais de combate às drogas.
Os EUA carregam o triste título de campeão mundial de uso de drogas ilícitas entre jovens e, paradoxalmente, também o de campeões mundiais em destinação de recursos ao combate às drogas. Acreditamos que isso aconteça porque são o “templo mundial” do individualismo e da venda de “falsos valores” impostos pela sociedade neoliberal e consumista. Os trágicos acontecimentos – recentemente noticiados pela mídia – gerados pelo uso indiscriminado de armas por cidadãos americanos mostram que proibir a compra de armas e munição nos EUA contraria o princípio do liberalismo econômico lá apregoado. A economia de mercado, que ganha milhões com a venda de armas, é mais importante do que a vida humana. E essa “armadilha dos falsos valores” reflete diretamente também na juventude brasileira, sendo uma das grandes fontes do problema do uso crescente de drogas pelos nossos jovens.
Estudos recentes apontam que 3,4% dos adolescentes no Brasil são dependentes de álcool. Além do grave risco da dependência, a censura interna é derrubada quando o jovem está sob o efeito do álcool, tornando mais fácil a experimentação de outras drogas. “Adeus superego”. E o prazer gerado pela droga torna o jovem bastante vulnerável ao desejo de repetir a experiência.
Didaticamente, o consumo e a dependência de drogas depende da interação de três fatores: a pessoa, o ambiente e a droga.
As mudanças no funcionamento da família, quando os pais deixam de se fazer presentes na educação dos filhos, graças à crescente necessidade de ascensão social e do desejo consumista de sucesso, dinheiro e status, causa a completa inversão de valores de uma sociedade que qualifica os seu membros pelo que possuem e não pelo que efetivamente são. A dignidade da pessoa humana é trocada pela falsa dignidade do acúmulo de bens e capital.
Na adolescência, fase da busca da própria identidade, é fundamental que o jovem tenha sonhos de um futuro mais justo, projetos de vida, desejo de construir algo melhor do que encontrou até então. Muitas vezes essa transcendência é destruída pelos valores do prazer imediato e intenso, falta de limites e não tolerância às frustrações. Muitas vezes os pais se preocupam tanto em dar o melhor para os filhos, do ponto de vista material, que se esquecem da relevante importância de transmitir valores morais, éticos e espirituais. Esquecem-se de mostrar que o sofrimento é redentor e o amor é exigente. Deixam heranças capitais para os filhos e falham em transmitir os princípios espirituais, os valores vividos e aprimorados por várias gerações, em contraposição aos valores materiais.
O jovem tem maior possibilidade de usar drogas quando perde estabilidade do ambiente social e familiar; quando seus vínculos com os pais são frágeis; quando falta disciplina e monitoramento por parte desses; quando não possui vínculos com instituições sociais que possibilitam o desenvolvimento de seus desejos de transcendência – como igreja, grupo de jovens, etc. – e quando seus pais e amigos abusam de drogas, ainda que lícitas, como o álcool.
O principal fator de risco apontado pelos estudos é a ausência da mãe em quantidade (tempo) e a ausência do pai em qualidade. Fica a pergunta: onde está o pai? Em muitos casos falta a função paterna de imposição de regras e transmissão de valores.
A travessia do rio da adolescência era bem menos arriscada há 20 ou 30 anos. As pedras eram mais visíveis e menos escorregadias, os riachos eram menos cheios, menos violentos e, com relativa facilidade, se chegava à outra margem sem grandes quedas e lesões. A situação mudou de maneira drástica e não há pai nem mãe que não perceba isso. Nossos filhos, hoje, andam num rio mais caudalosos, com menos chances de travessia segura, porque o escorregadio terreno das drogas, da violência, do comportamento sexual de risco, da televisão permissiva e erotizada, das informações passadas de maneira imatura e indiscriminada, obriga os adolescentes e os jovens a dar saltos que antes não dávamos. Eles, hoje, sabem mais do que sabíamos sobre violência, medo, amor, sexo e depressão. E sofrem mais do que sofríamos. Se ontem precisávamos desesperadamente do abrigo de uma boa família e de pais amorosos e seguros, atualmente os jovens precisam dez vezes mais de pais que os ouçam, “percam” tempo com eles, dialoguem, discutam os problemas e lhes mostrem que a maturidade é experiência que vale a pena. A ternura e a renúncia ainda são as duas grandes virtudes que mantêm uma família unida e que asseguram aos jovens uma razão de viver.
O ambiente
Faz-se necessário diminuir a distância entre o que se fala e o que se faz. Todos sabemos que a prática de esportes é benéfica ao jovem, lhe proporciona motivação, o traz para a convivência de grupos mais saudáveis.
Os mecanismos regulatórios podem ser mais eficientes na restrição da propaganda de bebidas, no controle dos pontos de vendas com aumento da idade legal pra o consumo de álcool (e fiscalização) e na restrição do horário de funcionamento dos bares, conforme a exitosa experiência desenvolvida na cidade de Diadema (SP), que vai completar cinco anos.
As campanhas antidrogas precisam ser permanentes para tornarem-se eficazes. É preciso derrubar mitos e esclarecer à população que o consumo da maconha (por muitos considerada droga “leve”) aumenta o risco de transtornos mentis, especialmente a esquizofrenia. Pelo menos 12% dos casos de esquizofrenia na Inglaterra foram desencadeados por seu uso. Além disso, a maconha piora o desempenho na escola e diminui a motivação do jovem para fazer as coisas. Quem é usuário regular da maconha tem tendência a adiar tudo.
Pensando na necessidade de esclarecimento permanente às crianças e adolescentes, transcrevo o depoimento de Percy Patrick, que escreveu, antes de cometer suicídio, essa carta endereçada aos jovens: “Se alguém lhe oferecer algum tóxico, demonstre ser mais homem do que eu fui. Não se deixe tentar, por nenhuma razão, e saiba responder com um “não”. Talvez você encontre “amigos” que lhe ofereçam gratuitamente um pouco de droga para depois, sucessivamente, fazer você pagar por ela. No princípio o preço é reduzido, mas quando perceberem que você se tornou dependente, aumentarão os preços. Não esqueça que a mesma pessoa que lhe vendeu a maconha terá, em reserva para você, também a heroína. E tudo isso por quê? Não certamente pela sua felicidade, mas para obter dinheiro. A droga pode oferecer momentos de felicidade, mas a cada um destes momentos corresponde um século de desespero que jamais poderá ser apagado. A droga destruiu todos os meus sonhos de amor, as minhas ambições e a minha vida no seio da família.”
A droga
No mundo das drogas existe o produtor, o agente financeiro, o intermediário, o usuário. O sistema é interligado com o do crime organizado, do tráfico de armas e da prostituição. É necessário prender e punir não somente o traficante das favelas, mas também os grandes barões que moram nos condomínios de luxo e financiam o tráfico de drogas e armas. Caso contrário, assistiremos passivos e inertes ao sepultamento de nossa sociedade, a cada dia mais distantes da tão sonhada civilização da justiça e do amor.
Termino essas reflexões reproduzindo o diálogo entre pai e filho que se preparam para cruzar uma ponte pênsil. Ante o perigo da travessia, o pai adverte o filho:
- Filho, tenha cuidado e preste bastante atenção onde coloca os pés, pois é muito perigoso cruzar esta ponte.
O filho, com um olhar que refletia mais estranheza do que obediência, responde:
- Pai, me pergunto quem de nós deve ser mais cuidadoso para atravessar, já que a minha intenção é pisar exatamente no lugar que você pisar.
Publicado pelo Conselho Federal de Medicina. Autora: Sigrid Terezinha Campomizzi Calazans, pediatra, Ipatinga, MG.
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